24/05/2006
Capelinha e casas de sapê da comunidade de São José da Serra, em Valença |
Localizado a cerca de 55 Km de Valença, município do interior do estado do Rio de Janeiro, o quilombo São José da Serra é um referencial de preservação de tradições africanas. O passado e o presente misturam-se no cotidiano desses moradores que ainda utilizam o candeeiro, o ferro a brasa e o fogão a lenha. Por uma estrada de terra batida, tão antiga quanto os 150 anos da comunidade, pesquisadores, jornalistas e caravanas vindas de várias regiões do país, aventuram-se em busca de um contato mais íntimo com a cultura local ou até mesmo um conhecimento mais aprofundado das próprias raízes.
A história da área começa em meados do século XIX, quando negros bantos chegam como escravos na fazenda Santa Isabel, a fim de trabalharem nas lavouras de café da região. Entre eles estavam os casais Tertuliano e Miquelina; Pedro e Militana. Avós de Manoel Seabra, 86 anos, atual patriarca da comunidade:
“Meus avós foram trazidos como escravos para a fazenda Santa Isabel. Ali tinha uma pessoa que maltratava e batia muito nos negros. Como na época já existia a fazenda São José, eles acabaram fugindo para cá, trabalhando em troca de moradia. Meu pai dizia que tinha uns negros que eram forros, trabalhavam nos cafezais, mas não eram castigados. Aqui era tudo mata e vovó morava bem nesse terreiro, onde construíram a capela. Depois os filhos deles casaram e tiveram filhos. O que eu tenho de irmãos nesse mundo de meu Deus, nem sei, ao certo", revela.
Muitos desses familiares permaneceram no local e constituem hoje a Comunidade Remanescente de Quilombo São José. Outros saíram a procura de melhores condições de vida. A pesquisadora do Projeto Raízzes, Marília Felipe, que procura valorizar a importância da influência da cultura africana na construção da sociedade brasileira, conta que alguns desses quilombolas migraram para diversas regiões do país, inclusive indo parar na Baixada Fluminense:
“Com o fim da lavoura de café e a falta de serviço na região de Valença, alguns desses moradores mudaram-se do quilombo. Há registros de alguns deles como o da irmã mais velha dos 15 irmãos, do senhor Manoel Seabra, Vó Brandina, mãe de Dona Zeferina. Ela mudou-se para Nova Iguaçu e trabalhou por algum tempo em plantações de laranja da Baixada”, explica.
Dia de festa
Roda de jongo também é aberta às crianças |
No mesmo terreiro onde foram construídas as primeiras casas de escravos, no Dia 13 de Maio, é realizada uma grande festa em homenagem aos Pretos Velhos, considerados guias ou protetores, por seguidores da umbanda, religião de matriz africana cultuada no Brasil. A comemoração é feita ao som de tambores de jongueiros vindos de várias comunidades do Rio, como: Quissamã, Pinheiral, Barra do Piraí, Serrinha e Angra dos Reis. Além disso, inclui também muita feijoada e uma missa afro.
À noite, o jongo do quilombo São José, que é tido como um dos mais próximos ao que era praticado pelos escravos, é apresentado ao redor de uma grande fogueira. No decorrer da dança todos são abençoados por Mãe Teresinha, 63 anos, atual líder espiritual da comunidade. Segundo ela, estes rituais foram mantidos graças ao empenho de Mãe Zeferina, que morreu em 2003. Em vida, ela abriu o jongo para a participação das crianças, garantindo que a tradição não morresse com o passar dos anos.
“Sou filha legítima de Mãe Zeferina e trabalhei com ela no terreiro por cerca de 30 anos. Antigamente, crianças não podiam participar do jongo. Quando ela assumiu a liderança espiritual da comunidade, uma das primeiras coisas que fez foi permitir que as crianças jongassem também. Se não fosse a força espiritual não existiria o jongo. Ele surgiu com os Pretos Velhos, tataravôs da gente. A raiz continua igualzinho. Cada tambor tem o seu dono, tem os orixás que tomam conta dele. É uma coisa muito séria, que respeitamos como uma religião”, esclarece Mãe Teresinha.
Nilton trouxe os filhos |
“Sempre tive vontade de trazer meus filhos aqui. Agora trouxe. É importante para eles saberem de onde viemos. Temos que valorizar nosso povo, nossas raízes. Quando cheguei aqui pela primeira vez foi uma emoção muito forte, tanto que chorei por uns vinte ou trinta minutos. Aqui, tudo me aproxima de minhas origens; a maneira do pessoal tratar, as vozes deles, você é tratado com humildade. Dá até para sentir a energia positiva vinda de nossos ancestrais”, relata.
A falta de infra-estrutura acaba favorecendo também a manutenção dessa cultura secular. No local só se chega a pé ou de carro. Telefone não funciona, carteiro não passa e a única escola, construída nos fundos da capela, só ensina até a quarta-série do Ensino Fundamental. A própria energia elétrica só foi instalada a pouco mais de cinco anos
Alegrias e dificuldades
José Ricardo: falta opção de trabalho |
A demora da conquista da posse efetiva da terra tem prejudicado e colocado em risco à preservação da cultura local. "Isso dificulta muito o nosso dia-a-dia. Eu cresci na roça, junto com meus irmãos e nunca faltou alimento. Nós plantávamos de tudo, atualmente só podemos plantar nos quintais. Se fazemos uma roça além, vem o gado da fazenda e acaba com tudo. Aí a gente acaba tendo que sair da terra porque nem emprego pra gente eles oferecem. Os trabalhadores da fazenda vêm tudo de fora", desabafa José Ricardo, 25 anos.
A impossibilidade de continuar com a prática da agricultura de subsistência e a falta de emprego no local têm feito com que os jovens, progressivamente, saiam em busca de novas oportunidades. Diante disso, novas profissões vão surgindo. Entre uma conversa e outra, o quilombo revela talentos que vão desde eletricista autodidata ao corredor João Batista, 27 anos, que inclusive ganhou diversas competições, ficando em segundo lugar numa maratona estadual. Mas atualmente, por falta de patrocínio, trabalha como pedreiro em Jacarepaguá, Zona Oeste do Rio.
Hora da despedida
Projeto Raízzes se despede da Serra da Beleza |
O clima também encanta pessoas como o motorista de ônibus, Alfredo Esteves, de 52 anos: “A grande verdade é que eu tinha um desejo muito grande de conhecer um quilombo. Agora realizei esse sonho e ainda tive a oportunidade, embora do meu jeito, de dançar o jongo. Apaixonei-me. Com certeza quero voltar!”. garante.
Meu Adeus
Esta reportagem é dedicada a minha avó, Glória André, falecida no último dia 13 de maio, enquanto eu estava no quilombo São José da Serra fazendo esta apuração. Como o celular não funciona no local, só pude saber do ocorrido cerca de 24h após, quando chegávamos em Conservatória. Infelizmente não pude dar-lhe o último adeus. Mas deixo-lhe a letra de jongo: “No dia 13 de Maio, o cativeiro acabou e os escravos gritavam: liberdade Senhor!”. Mulher, negra, com extrema força, que deixou essa terra logo no dia em que se comemora nossa liberdade, para brilhar, como as chamas que vi flamejarem na fogueira, em algum outro lugar, perto ou distante. Agora sim estás livre!
*Matéria publicada no site Viva Favela em 24/05/2006
Texto e fotos: Fabiana André
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